Tuesday, August 31, 2004

Carne mole às pregas...
Pregas de sangue, de histórias, de estradas.

A colher entra e sai, abrupta,
cheia, fria, total.
A colher penetra e desfigura.
Ser criança é ser um copo de vinho de uvas.
Criança de flor na boca,
flor desventrada na boca da criança.

Boca que toca, boca que come,
boca que devora, boca jacaré de muitos dentes,
boca na palavra,
palavra cheia na boca.

A criança cresce através da colher, da flor e da boca.
A boca alimenta o sangue,
e do sangue alimentando cresce a magnólia em flor,
magnólia palavra,
palavra poema na boca da criança.

As paredes são laranjas que caem do tecto.
laranjas amargas,
laranjas de gomos testiculares,
laranjas de sémen e sangue na boca magnólia da criança.
Criança virgem na essência,
criança silencio, criança homem,
criança emparedada, criança de poema morto.

A boca da criança espera.
A colher fica. Vai e vem
e marca o ritmo de todo o universo,
e todo o cosmos depende então da boca relógic
da criança homem.

A colher encerra o segredo,
o segredo é encerrado nos dentes de leão,
segredo colher,
colher de poema,
segredo sémen.
o corredor era fundo como eram fundas as noites.
pelo o corredor as palavras encerradas,
os cheiros transpiravam
e as vozes ora esmoreciam ora rebentavam em ventania.

pelo corredor adentro passava a vida e o crime,
crime celado e esquecido na memória de todos,
inexplicavelmente óbvio...

e de mim a história do quarto mais á esquerda.
não, não interessa de facto as flores mortas
e o odor à água podre...
é um passado manifestamente recalcado...

depois vieram todos vestidos de negro,
num silêncio cor de prata...
num choro por dentro dos olhos...
às vezes ganha-se pelo que se perde..


Cheira-me a medo o passado passado.
As memórias são dardos de força que se projectam
para além do tempo.
Dardos de rompante,
espinhos secretos e omissos que se escapam
à temporalidade da vida,
e nos enchem hoje do que já vivemos ontem.

Nasci pelas pernas abaixo do ventre,
sabia a sangue e a guelras de peixe.
Cortaram-me em parte e separaram-me aos bocados.
No início de mim separaram-me de mim;
Todos morremos ao nascer, diz o poema.

Depois chorei muito,
tanto que me esqueci que a vida existe para além do pranto.

O meu corpo cheirava a pele e a leite,
os meus olhos turvos eram cegos.
Ao longe ouvia vozes tumultuosas,
seres imensos e disformes abeiravam-se para me tocar
e me oscular com muitos lábios.
lábios sedentos, bocas salivosas de muitos dentes.

De braço em braço passavam o meu corpo morto
agora nascido do tributo do sexo inócuo.
De braço em braço de muitos polvos sedentos,
de muitas bocas hienas...

O sangue corria pelas portas do cosmos,
projectando o meu corpo contra o muro da idade.
O meu corpo cresceu aos pedaços,
muito antes de encontrar a alma no verso do corpo.

Não me lembro da sensação de morrer,
nem do passar incessante dos dias.
A verdade é que o tempo nos apodrece aos poucos
todas as parte internas do corpo e da alma.

A palavra foi-me concedida mais tarde:
sem sentido encheram-me a boca de sílabas
e colocaram-me o marfim com alicates de fogo.
A dor misturava-se com o sangue negro que me escorria
às golfadas...
Depois desmaiei muito tempo e a palavra amadureceu
na boca de árvore, e um dia disse a palavra:
Crime!
E as pessoas aplaudiram sedentas pela palavra tesouro
dita em alta voz.

Às vezes sonhava com a palavra,
a palavra que se impunha,
a palavra sem som, nunca antes dita ou pensada.
Mas o sonho desvaneceu-se e a palavra nunca dita é nunca dita.

A palavra deu lugar ao poema
e o poema deu lugar à pedra,
e a pedra bateu no tambor
e o tambor acordou as vozes e os segredos,
e o aço materializou o tempo,
e o poema disse a verdade inconclusiva.
os cactos cresciam lentamente aos olhos dos anos,
eram verdes com muitos espinhos nas pontas e em redor.
de quando em quando nasciam flores de cor pastel,
flores inodoras de pétalas furibundas que nasciam na agonia do espinho,
na vicissitude dos tempos.

eu devorava os cactos com a minha melancolia ao som dos faunos
e dos cavalos vermelhos com crinas de palha,
ao ritmo constante do galope,
enebriado pelo sono da criança de lábios cozidos com linhas de cristal.

às vezes o vómito do sono era quente,
tornando o trespassar da epiderme uma sobremesa doce e calma,
pois calmos são os dias em que a criança parte alada no rapto dos cavalos com crina de palha.
outras o ruminar da memória fazia ferver o sangue
ao ponto de cozer a carne do corpo
corroendo os ossos fracos ao estado de erosão delicada,
e os olhos derreterem como cera num pus azul claro.

os cactos viviam assim para lá da vida,
cerrando em si os segredos do trotar da alma
da criança de lábios cozidos.



no alto da casa vive o segredo.
segredo em metamorfose pelo tempo,
metamorfose esquecida no corpo transfigurado.
num instante cresce-se e deixa-se de chorar,
morre a criança de dentro da boca quando nos gritam do cimo da voz:
- levanta-te Já és homem -.

depois arrefecem todos as partes do corpo,
e aquecem todas as partes soltas do corpo.
morre-se um pouco no gesto cíclico
da masturbação.
depois fica o desgaste,
o cansaço,
a doença que se agarra ao corpo,
a sensação de vómito proíbido.

no alto da casa vive um ser de muitas pernas e braços,
ser multifacetado de muitas formas,
ser com encéfalo de homem,
homem com muitas pernas e braços,
homem com muitos medos,
homem morto pela criança assassina,
criança desventrada e amarrada ao alto da casa.

no alto da casa vive o sangue.
sangue derramado pelas gengivas violadas,
sangue menstruação em roupa clara.
sangue secreto e amordaçado
sangue real...sangue coalhado pelo calor da boca.

no alto da casa vive uma mão de ferro,
mão escondida no sorriso da criança,
criança escondida pela sombra da voraz mão.
mão de ferro de muitas verdades,
verdade sorriso,
verdade dor,
verdade escondida na mentira filial.

no alto da casa vive o baixo da casa:
casa reflexo, casa espelho...casa casa.


Monday, August 30, 2004

olho para as mãos...
mãos pás de moinho, pás devastadoras do tempo e da água...
água incessante,
água uterina onde crescem as mãos.

mãos livro, mãos palavra.

nelas se acolhe o pássaro voador,
nelas repousa a criança morta,
nelas me entrego pelos dedos adentro.

mãos silêncio afundado na palavra muda,
mãos gesto...


depois dizias: "as tuas mãos são mãos com muitos dedos"...
e eu chorava muito de mãos estendidas sobre a urna,
e adormecia-te com os meus treze mil dedos electricos...

penetrava então o teu corpo portal com ambas as mãos,
tocando entre mundos os teus vários seres animais...

Wednesday, August 18, 2004

o banco de madeira encontra-se no centro da sala.
no centro equidistante do cosmos e da vida,
no centro da flor e da pedra,
no centro onírico da visão e da prece.

no banco a criança existe em si mesma,
no banco a criança morre através do esperma
que lhe sai escondido,
no banco a criança vive pelo gume.

a criança dorme ou hiberna sentada,
come pela boca do silêncio de olhos cerrados,
sonha-se a si mesma mais tarde
devorando o centro do cosmos,
com os dentes canibais de quem come a carne.

e o seu corpo existe nu,
em suave aveludada pele.
pele bacante de asas suaves,
pele filosofal.
corpo despido de orgulho
corpo de vergonha silenciosa
corpo de madeira, banco com veias.
total dissoluto e esquecido.

a criança lacrimeja em gargalhadas de leite,
cuspindo pelo umbingo restícios de um nascimento antigo.

a criança sofre e morre pelo banco adentro,
embalada pelo ritmo das estrelas de aço,
desventrada pelos sexos sagazes e mudos.

no centro um banco nato-morto e desfocado
pelos olhos peixe-aranha do cosmos

à noite

à noite a visão é vermelha e os ouvidos poços de petróleo,
as mãos são seres espelhados com muitos bicos pontiagudos.
existe a minha boca na noite. boca aberta e fechada,
boca desejosa, boca escancarada ao luar,
boca de muitos silêncios, boca raiz profunda,
boca cadeado.

e existe uma língua na boca, língua tártara,
língua cobra de muitas voltas, língua tronco, língua glande.
língua de palavra na boca,
palavra vermelha nos olhos da noite,
palavra decibel nos ouvidos cimentados da terra.

e existe o abraço...
o abraço que te dou, que me dás e que não te dou,
o abraço esquecido e duro, o abraço casca de noz.
o abraço que nasce através da boca,
e que morre na boca da palavra