Tuesday, August 29, 2006

um som ouviu-se em toda a floresta de cristais.
um som pela noite abafado, um respirar da manhã.
uma onda de elevada distância aconchega o acordar.
os três olhos da cara batem na onda ao de leve, dizem-lhe:
leva o acordar para os olhos da vida,
deixa-nos a nós o descanso das uvas.
um peixe com boca de girassol estende suas longas asas e voa,
o seu enlevo cobre toda a humanidade.

ramos de oliveira caem dos céus,
ressoa nas suas folhas um som, um rufar, o magnânime som da voz,
ao de longe, tocando todo o sangue, tornando-o vivo,
um quebrar de galhos nos pés, um vento sibilante.

uma história toca todos os cantos do som,
todos os vinhos da floresta.
um sabor a castanhas encerradas em seus ouriços
agarra-se às pálpebras da saudade:
o paladar do divino sorriso na boca da alma.
uma história é uma ideia de muitas palavras,
um som orquestral de construção complexa,
batido em seu aço com martelos de fogo:
passa pela língua de oiro das musas,
dos deuses, dos filósofos, das frutas maduras,
materializando-se no passar de ar da garganta, pela boca acima;
cria-se a memória da palavra,
o verbo e o acontecimento máximo,
nasce a história como nascem as coisas em eterna metamorfose.

o som forma-se na perfeição do acontecer,
pela cidade de árvores em flor,
pela floresta, pelos rios de sangue, pelas guerras;
forma-se no gume, na ponta da escuridão.

uma gota cristaliza o motivo, a avaria, o funcionar.
no interior da gota um ponto, uma vírgula, um pensar.
tudo acontece na exactidão do som,
no bater do sangue, no parar do passo...
um silêncio total no transbordo da história,
no sobrevir do sossego.
Uma mulher que anda de mãos no silêncio das coisas,
corre em passos muito estreitos pela melancolia.
o seu movimento é de uma beleza extraordinária,
como se toda a beleza dos olhos tingisse o ar por onde penetra.
suas mãos desviam as cortinas de névoa como cordas de cítara,
e todo o seu canto é um mistério.

una mulher que anda com sua cabeça muito alta,
com o seu sexo orvalhado e descoberto da inocência,
com sua boca falante e arquejante.
sua língua é imensa pela palavra,
pela palavra desconhecida e secreta.

existe em cada mulher uma palavra, um verbo.
palavra inovadora da acção descoberta,
palavra selvática na mente e pela língua.
palavra giratória de sentido.

uma mulher que anda com mil cascatas de miosótis,
sua pele azul pelo pólen das lágrimas,
pele em céu transformada.
mulher no céu e na terra, no ar e no fogo, na água e na alma.

existe uma mulher em cada cena particular do mundo,
com seus grandes lábios silenciosos,
com seus instintos diligentes.
queimando os corpos dos bacantes perdidos na água,
seu fogo é frio pela espinha e quente pela pele.
existe um fogo que fala em segredo:
inaudível é sua voz lunar.

Uma mulher que anda de mãos no silêncio das coisas,
tomando o mundo pelo ventre,
despejando-o e libertando-o pelo tempo incógnito e sagaz.

Monday, August 28, 2006

um caminho...um qualquer caminho.
plátanos gigantes que tocam o céu com suas imensas folhagens.
um ninho de gigantes no baixo do mundo.
no chão uma laranja com seis gomos, um sorriso, e um gato muito branco.
no ar uma lágrima que sobe pelo céu acima.
está sol, é um facto, mas chovem caminhos no caminho.
tenho os pés molhados até ao lado mais interno do coração.
oiço o coaxar de enormes sapos que habitam a minha boca até à garganta.
olho o caminho, o caminho todo, olho-o com os olhos de lince:
momento a momento, passo a passo...

um caminho são muitos caminhos:
o meu, o teu, o dos deuses, do próprio cosmos.
sigo o seu sabor a canela, a especiarias doces e finas.
com a minha língua lambo a terra, sinto-a por baixo da boca,
dilacerando a carne, as papilas, corroendo os dentes.
engulo o caminho enquanto o caminho me engole.
sinto as suas flores carnudas a saírem pelas minhas orelhas,
as suas pedras a carcomerem a alma.
o caminho toma-me em seu colo e embala-me.
sou uma ideia dispersa que se embala ao sabor do caminho.

um caminho leva-nos sempre para um outro lugar de nós.
um caminho faz-se pela dor das pernas.
anda-se o caminho vivendo-o pela dor.
a dor é permanente, a felicidade é passageira.
tudo o resto é caminho e tempo camuflado.

Pego no gato pelo rabo, e dou de comer à laranja,
a lágrima sobe pelo céu e apaga o sol,
um gigante cai do ninho e morre no baixo do mundo,
os plátanos fogem com suas raízes para a parte mais funda do mar.
o caminho é um qualquer caminho.

Saturday, August 26, 2006

no outro lado do mundo,
um buraco, uma ruína, uma pobreza.
no ar uma tristeza, um sabor a morte, a calor, a delírio.
eu queria encontrar-te sem saber que te queria encontrar,
como todas as coisas na vida.
eu não te pertencia nas minhas visões,
e tu não me querias como a sede que nos fica na garganta.

depois havia o cabelo e o infinito do olhar,
havia um sorriso no ocaso daquele astro nosso.
lembro-me de um castelo e de um rio, e de uma cidade.
lembro-me das amoras silvestres que me davas e
as papoilas com pétalas de rosa do teu regaço.
lembro-me da tua ausência, e da minha presença na tua ausência.
lembro-me do mar e da areia,
daquele abraço dado ainda no crepúsculo de nós.

eu fui expirando do ser que era,
e criando-me no ser que desejavas.
depois um flamejar dos corações,
um incêndio total dos olhos e das mãos.

depois havia uma casa com um pavio muito aceso
colocada no alto do mundo,
onde nos rendíamos aos corpos e à dor do desejo,
onde festejávamos a vida com o sumo das uvas,
onde cantávamos iolandas e viajantes loucos.
onde a língua tocava nos pés que falavam,
que riam, que declamavam.
havia os lençóis muito floridos que transpiravam,
havia a tinta, as fotografias, e tudo o que nos soube a água.
depois fomos ficando e ficando e voltando a ficar.
fizemos uma morada por cima de uma quinta e de um rio,
onde o fogo rebentava no céu, e a lua tinha sabor a ti.

depois uma flor cresceu pelo o úmbigo da tua barriga,
e com as mãos no céu beijámos todas as partes do ser.
amámos a vida beijando-a pelo colo.

o coração é uma casa imensa,
onde nos guardamos nos outros que se guardam em nós
guardo-te no coração porque a alma tem muitas cabeças,
sobes e desces por mim adentro, tomando o jardim que em mim construí.
o coração é uma casa imensa onde podes pernoitar a vida,
na chama que se acende pelo vento...
também hoje.

Friday, August 25, 2006

começas um mundo com um ramo de borboletas,
sentes-te novo, vitorioso e sedento.
segues no comboio,
lá fora gente que passa, que vem e que passa. e que fica.
tu imóvel herói sais na última porta à esquerda.
respiras o ar da cidade e intoxicas-te de contentamento:
nos lábios um sorriso rasgado por um serrote.

caminhas sem vacilar,
desces e desces,
vais entrando à medida que desces.
vais entrando e transformando-te.
assim se acolhe quem entra, pensas tu.

os ventos são habitados,
as ruas desertas.
os passos, os teus, vacilam um pouco,
a respiração torna-se inusitada,
na boca um sabor a ocre e a peste.
Pensas: hoje serei uma flor amarela,
um grito, uma alucinação, uma pintura.

vais crescendo no teu corpo de flor.
tuas pétalas são rios de seiva,
suaves na sua grandeza de cetim.
olhas com teus caules suculentos
a extensão da terra.
continuas a descer na tua transformação.
Sou agora um homem,
dizes com a vaidade toda da boca.
na tua testa uma pétala amarela morre!
amparo as minhas costas junto ao teu corpo.
deixo-me estar muito quieto:
sinto-me resguardado no teu braço ao de leve.

vejo-te pelo sentir das costas,
pela brisa que emanas...
imagino-te aí sem te querer ver em mim,
em mim enquanto ser que respira,
enquanto ser que em golfadas aspira as palavras, a poesia e o canto.

as minhas costas são montanhas e
as minhas costelas arco-íris de terra vestido.
sinto um sonho, um arrepio, uma faca que trespassa o próprio sonho.
faca que pelo tempo cresce e se impõe:
sua lâmina entra como o mel pela boca,
e perfura como a palavra pela língua.

deixo estar as costas junto ao braço que me acolhe,
que me toma e me lança no vórtice da saudade.
encolho-me perante a queda, alongo-me sobre o voo.

caio por fim sobre o beijo do teu braço,
braço na plenitude do desejo, do terror, da articulação do toque.
deixo-me viver sobre e por baixo da morte,
por dentro do beijo e por fora do braço.
deixo-me ser
pelo sonho das costas resguardadas no teu braço ao de leve.

Thursday, August 24, 2006

o sangue escorria escondido por cima dos armários.
aqui e ali uma reminiscência, um cheiro,
um pêlo, uma pena, uma escama.

o compartimento era posse da cama,
e a cama era posse de um cristo austeramente vigilante,
parado, com seus olhos de rosa.

havia um silêncio, um aterrador silêncio,
havia uma negra calma, uma ausência, um descalabro.
havia uma dor latejante, um colchão que estremece e respira.
havia um oceano de algodão e de linho
e aqui e ali pequenos vasos de bolor.

haviam os seres filiais presos entre si,
seres que dormitam sobre o limbo da vida vivida.
havia o vurmo a escorrer pelas pernas,
pequenas crostas extraídas de suas abóbadas ulcerais.

por baixo as estrelas brilhavam em sua luz violeta,
segredando com suas grandes bocas de muitas pontas.
havia a água parada que caía dos olhos da criança,
da cria que morria por cima dos armários ovulares:
seu corpo dobrado sobre um sono profundo de ébano,
rematando o espaço numa taciturnidade
quase total.
naquele dia as ostras nasceram sem concha.
um homem com cinco pernas trepou pela aura do céu e
a lua beijou um capricórnio dos céus perdidos;
eu bebia a água do mar e era feliz então, como
é feliz quem com gotas de orvalho toma banhos termais.

um mundo afogado subiu pela saliva da boca,
um vómito, um segredo, uma lâmina, uma leve melancolia.
haviam os vidros, os fluidos que nos escorriam pelos poros,
havia a naftalina, as preces ditas entre os dentes,
a roupa, a nudez, uma cegueira fervente,
os dedos, o aroma a carne temperada e doce.

Depois um vento de estrelas de anis,
estrelas asas de pássaro,
pássaro monótono e breve,
breve como tudo o que é breve,
como uma pena que levita,
como uma pena que decai forte e longe da alma.

existe em cada coisa um lado,
um lado secreto, enigmático dirias tu,
como algo que escorre visceralmente,
porque em cada lado existe uma visão,
uma visão que nos guarda, que nos cerca.,
que nos faz ficar.

Tuesday, August 15, 2006

Na tua mão nasceu aquele pôr de sol,
como se fossem as tuas mais pequenas extremidades
que ditassem o ritmo do cosmos.
Depois foi uma gota que tombou no universo,
um raio de água que flamejou o oceano da vindima.
Eu beijei aquele crepúsculo,
e todas as coisas que se contêm na tua parte oriental.

Coloco-me sobre a mesa.
Aqui e ali um garfo, uma faca,
um copo com muito água,
um prato selvagem.
Coloco-me sobre o prato e diante do prato;
(deste lado vejo-te melhor sobre o reflexo destas coisas,
destas poucas peças que nos perturbam,
que nos ausentam, que nos molestam).
Decido comer um pardal que canta,
como quem come um mundo todo.
Ausento-me do acto.
Paro um pouco.
Afasto-me...
afasto-me da mesa e do corpo,
e do corpo e do prato.

Retenho-me na parte de mim que ficou contida em ti,
e num instante sou um pardal que canta,
ou um canto em forma de pardal.
Olhas-me como quem se olha,
tocas-me e comes-me.
A tua boca sabe-me a mel e a brisa do mar,
como se na tua boca a minha boca te comesse,
e pela tua boca saboreasse todos os teus paladares mais ocultos.

Tenho um braço que toca todos os lados do mundo.
Tenho a minha mão e a tua na sua extremidade;
toco num só gesto os dois lados da cabeça.
Reconheço as mãos que me tocam e te tocam...
Adormeço como os pardais adormecem:
como se o canto aglutinasse o corpo e a alma e o próprio canto.

Sorvo-te por dentro...
Pelo teu umbigo filial espreito ao longe um sol,
o mesmo sol que nasceu na tua mão outrora,
e amanhã também!
Nasceu uma flor por cima dos olhos,
flor de pétalas multicolores,
muitas mil pétalas universais,
equidistantes entre o coração e a alma.,
entre a pele e o osso.
Nasceu uma flor por cima dos olhos,
flor de vontade pela vontade de ser,
ser magistral e completo como todas as coisas belas;
coisas poucas que nos brotam pelos poros,
vivas por nós adentro,
mesmo que por fora se revelem.

Nasceu uma flor por baixo dos olhos,
flor nariz, flor boca, flor língua.
Flor de potência maior que a própria cara,
maior que o pensamento contido por dentro da cabeça da flor.
Nasceu uma flor por baixo dos olhos,
olhos obscuros pela dimensão da alma da flor,
flor que nos cabe, que nos enche sem acepção.

Nasceu uma flor por cima do céu
por baixo do mar.
Nasceu a flor,
aquela flor crisântemo,
de oiro contida.
Flor minha que por nós cabe pelo lado de dentro
magnificando os teus, meus olhos, pelo lado de fora.

Monday, August 14, 2006

Talvez pela palavra e pelo vento,
pela inacção dos pássaros de morte,
eu tenha nascido numa casa nocturna,
como todas as casas onde possa nascer a noite ou a tarde.

Talvez pelo hálito dos dentes furibundos
Das garras fusiformes de um tigre de porte funesto,
eu tenha nascido numa selva imaculada de flores silvestres
como todos as selvas carnívoras e sedentas de poema.

Eu era um ser sedento como a água das chuvas,
aqui e ali gotículas de resina adocicada formavam-se
em redor dos olhos e da boca.
Eu era um ser nocturno como a lua,
um ser luminoso da escuridão,
um pirilampo,
uma folha caída,
uma brisa inesperada,
eu era a aurora dos dias noctívagos.

Depois cresci como crescem as raízes
como enchem os rios mais sedentos,
como choram as lágrimas dos pastores,
como sucumbem os insectos com a luz homicida.

Cresci até ser do tamanho do mundo,
não do tamanho do mundo enquanto mundo,
mas do mundo mundo,
da pérola pérola
da boca boca
do beijo beijo.

Um dia uma inesperada solidão cresceu por mim acima,
(como outrora cresceram as ortigas a meus pés),
uma solidão fascinante e radiosa,
uma solidão autêntica e laboriosa do coração,
coração com muitos mil braços de polvos lacerantes.
coração aquário,
coração invólucro,
coração vida, coração coisa,
coração coração.
Encerras o segredo dentro da concha dos sonhos,
como se asas de anjos te pudessem roubar...
Encerras em ti todas as coisas mais pequenas do universo,
por isso deixo-me adormecer nos teus muitos braços
e ser sugado pelos teus instintos de mariposa.
Um beijo é muito coisa dirias tu,
e da minha boca encerrada por imensidões de florestas,
brotavam lótus ensanguentados.

Boca minha colocada no centro do centro.
Boca minha, boca dilacerada e corrompida pela palavra.

Pegas na minha boca e calas-me com um alfinete cor de prata,
dizes com a boca tua que a dor faz parte do segredo,
do segredo das conchas dos sonhos.

Levanto-me então já sem boca,
e grito, com os ouvidos e os olhos, silêncios.
Silêncios virgens, silêncios da alma dos falcões.

Sento-me novamente sobre e de encontra a palavra,
despojo-me nela e deixo-me estar.
Fico assim durante a construção do mundo e talvez um pouco mais ainda.
Cerro os pulsos para serrar os pulsos,
porque as mãos comunicam e tocam mais que boca.
As mãos são seres autónomos de muitas almas,
que vivem em nós
mas para além de nós.
Penso que a loucura desceu às mãos.
Mãos já separadas da boca e do corpo,
mãos com muitos dedos meus, ou outrora meus.

Quero dormir um pouco e sonhar contigo
como se tudo se voltasse a unir no silêncio dos sonhos.

Existem praias dentro dos sonhos com muitas ondas...
Ondas nocturnas, ondas palavras, ondas abraço.
Deixo-me ficar por lá e assento a minha alma junto a mim.
Deixo-me sentir, sentir-me através da praia e da noite.
Porque a noite existe pela praia e a praia por dentro da noite.

E na noite
descubro o segredo que guardas nas conchas do sonho.
Enrolo-me então no mais ínfimo grão de areia e deixo-me encerrar
na concha que guardas em ti.
Deixo-me ficar pela concha que é tua,
até a alma cobrir os teus olhos de magnólias nocturnas em flor.